Crónica de Jorge C Ferreira | Uma notícia triste

Jorge C Ferreira

 

Uma notícia triste
por Jorge C Ferreira

 

Quando um colega chegou depois de almoço, já tarde, e se sentou ao pé de mim com um ar triste, fiquei preocupado. Depois despejou:

«Vê lá que fui para ir almoçar com antigos colegas e acabei no funeral do Q.»

Parei tudo o que estava a fazer e as lágrimas vieram-me aos olhos. A pergunta saiu rápida:

«Que lhe aconteceu?»

A resposta saiu titubeante:

«Uma doença má e estranha. Não sei ao certo.»

Até hoje, não encontrei resposta para tal coisa. A vida começou a passar como um filme pela minha cabeça. Vieram-me à memória passos muito antigos:

Vi-o dançar na sua forma única o yé-yé;

Vi a sua franja loira a tapar-lhe o olho esquerdo;

Vi o seu pullover Sidney. Todos tínhamos um e cada um de sua cor;

Vi o seu andar único;

Voltei a conversar com ele de uma forma quase mediúnica por breves momentos;

Rememorei muitas das nossas conversas inacabadas;

Lembrei-me de termos comprado os lugares cativos na bancada coberta do velho estádio de Alvalade no mesmo dia;

Lembrei-me de ir ver um Sporting Benfica e ele ter levado a Mãe e eu a minha namorada;

Lembrei-me das nossas caminhadas de regresso a casa, ele morava numa rua antes de chegar à minha, da despedida e de continuar, de todos os passos e muitas conversas;

Lembrei-me de ele ter sido minha testemunha no antigo tribunal da Boa Hora, antes do 25 de Abril. Eu acusado de ter participado em manifestações proibidas, distribuição de panfletos e resistência à autoridade. Ele a dizer o melhor de mim sem titubear, frente a um pelotão de polícia que fez questão de assistir ao julgamento e onde alguns foram testemunhas;

Lembrei-me como me separei de tudo quando casei a primeira vez e fui morar para a Parede.

Cheguei a casa e chorei. Chorei de dor e de raiva. Raiva de não sabermos uns dos outros. A dor de nunca ter sabido do seu sofrimento. Uma luta que tento levar a cabo hoje em dia.

Entretanto o meu primeiro casamento já tinha acabado. Já tinha crianças em casa. Tanta coisa tinha mudado e eu tinha mudado tanta coisa na minha vida. Fui ver umas antigas fotos nossas e é aquele que ainda hoje recordo.

A última recordação que tenho dele é um cartão, a comunicar-me o seu casamento e a pôr a sua casa à disposição. Devo confessar que aí tive um baque. Pensei, isto faz parte da minha vida. Nunca devemos afastar-nos de forma tão radical. Hoje tento manter-me ligado ao que foi a minha vida. Tento ligar os Amigos, formar uma rede para que nenhum de nós se sinta isolado.

Aquela tarde e aquela notícia mudaram muita coisa em mim. Percebi, o que já sabia, que a vida é um instante. Comecei a saber distinguir melhor o essencial do acessório. Há coisas que não valem nada. Quanto mais vamos crescendo mais vamos aprendendo. Talvez um dia voltemos a ser meninos.

Hoje lembro-me muitas vezes de ti. Eras uma pessoa íntegra. Com os valores no lugar. Sabias o valor do amor. Continuo sem saber o que te aconteceu e isso transtorna-me. Revejo-te muitas vezes em várias fotos:

Na Sibéria a comer gelados;

Numa viagem inusitada à Guarda;

Na Orbitur da Costa da Caparica;

E vejo-te, vejo-te muitas vezes.

Fazes-me falta. Um beijo.

«Isso de nos afastarmos dos Amigos tem sempre custos.»

Fala de Isaurinda.

«Tens razão. Nunca devemos largar esses laços.»

Respondo.

«Foi pena não veres isso na altura. Uma pena!»

De novo Isaurinda e vai, a mão esquerda a limpar uma lágrima.

Jorge C Ferreira Março/2022(342)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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28 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Uma notícia triste”

  1. Maria Matos

    E é assim a vida… Tão triste receber notícias dessas,. Quanto se sente a morte de um Amigo. Dor indescritível. Coração pesado!
    Recordações que sendo um bálsamo causam tanta dor… quando já foram grandes alegrias.
    Já todos passámos por situações destas, que o Jorge, tão bem descreve! Obrigada, Poeta Amigo.
    Aquele Abraço!

  2. Maria Luiza Caetano Caetano

    Muito nos magoa a partida de um amigo.
    Não nos convencemos de que num suspiro, partimos. Não nos isolemos, como nos aconselha, meu amigo. Lembremos que nem sempre o silêncio é de ouro. Dói muito ficarmos com “ses” na consciência.
    Lembremo-nos de cada um de nós, com mais frequência. Ouvir um “Olá.” Sabe sempre muito bem. Gostei muito, mas também chorei muito.
    Um texto muito sensível, querido escritor.
    Um abraço grande.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Rosa. A tristeza que cada vez se acerca mais de nós. Os amigos que vemos partir, alguns antes do tempo. O nosso tempo a esgotar-se. Abraço grande.

    2. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. A tristeza por vezes bate-nos à porta de forma inesperada. São socos e nós somos os sacos de boxe. Coisas que doem. Abraço imenso

  3. Coutinho Eulália Pereira

    A dor da perda. O valor da Amizade. o que fomos e o que somos.
    A vida é mesmo assim, meu Amigo.
    Vivemos das memórias dos amigos que nunca esquecem. A amizade supera tempo esse distâncias.
    A vida vai-nos ensinando a valorizar pequenos momentos.A idade ensina. A vida é sabia.
    Quando se perde um amigo, a dor é profunda.
    Amizade é amor infinito.
    Ficam as memórias.
    Obrigada, pelos momentos de reflexão, que proporciona através da sua escrita única.
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Os amigos que partem. Os amigos de sempre. Que saberão eles de nós? Que sabemos nós deles? Abraço forte

  4. Maria cristina Belchior Ferreira

    Meu querido amigo, a vida prega-nos partidas e nem sempre conseguimos estar presentes aonde e com quem mais gostaríamos. Mas sabes Jorge, eu acredito sinceramente que o teu amigo sabia do teu amor por ele. A delicadeza do pormenor das memórias que sempre trouxeste contigo, faz-me acreditar que ele te sentia perto dele. Sabes que é impossível estar em todo lado ao mesmo tempo.
    Uma crónica que me doeu, por isso só agora estou a comentar.
    Da tua amiga que nem sempre consegue estar presente, mas que te trás sempre no coração.
    Abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cristina. Espero que ele não me tivesse esquecido e que ainda se lembre de mim. Eu sempre me lembrei dele. Faltou-nos sempre o passo final. Abraço grande

  5. José Luís Outono

    Memórias tocantes de momentos sempre interrogativos do porquê.
    Traço apelativo de leitura, apesar do lado triste no descrever de momentos do antes e depois.
    Grande abraço meu amigo!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís. Momentos que doem. Os sentimentos ao rubro. Abraço enorme

  6. Estas notícias são murros no estômago. Curvamo-nos, impotentes de dor como após um assalto violento.
    O texto fez-me lembrar a conversa de há dias, a foto daquela colega de viagem. (A Sibéria foi uma das subsequentes).
    Tem uma boa semana, amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Sofia. Doi muito, minha Amiga. São dores que duram. Vêm e voltam. Parece que nunca fizemos tudo. Abraço grande

  7. António Feliciano Pereira

    Muitas vezes somos surpreendidos por notícias que não esperávamos. A vida tem destas coisas: o que mais surpreende é a notícia dolorosa como se ela não devesse acontecer, e viveríamos para sempre na nossa comunidade.
    Nada é como desejamos — pelo menos nos breves momentos em que
    não pensamos no que mais nos espera.
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. Sim notícias que nunca queremos que aconteçam. Pancadas que nos marcam. Sofrimento. Abraço forte

  8. Arménia Almeida

    A Vida é, por si só, um tanto ou quanto complicada, ou melhor ; nós, seres humanos, muitas vezes a complicamos, com as nossas ‘ andanças ‘ e voltas e reviravoltas. Mas quando algo como o que acabei de ler neste seu Texto tão expressivo e desgostoso
    acontece, quando uma certa e determinada notícia nos dá um ” sopapo ” , nos dá um abanão, não conseguimos disfarçar o que o coração sente. Verdade, que custa muito sofrer por alguém com quem tanto convivemos, com quem tanto falámos, que tanto nos levantou a moral e nos deu forças para continuarmos em frente e de cabeça levantada. Mas a vida é assim e é assim, que temos de a abraçar e continuar vivendo tentando dar-lhe de novo alguma volta que nos faça continuar a crescer dentro da melhor normalidade. GOSTEI !!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Arménia. Sim. São murros. Dores intensas. Sentir, além disso, que não fizemos tudo. Fica sempre o último abraço por dar. Abraço enorme.

  9. maria roma matos

    Perder um Amigo dói muito.
    Quantas vezes passo por aqui apenas para um um Olá silencioso. Acredito que em mim haja alguém que pense.

    Abraço abraçado.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Roma. Os abraços silenciosos são sempre intensos. Marcas que ficam impressas na vida. Abraço grande.

  10. Ivone Maria Pessoa Teles

    Gostei, tristemente. Quando se chega à minha idade, quase que perdemos amigos diariamente. Vão partindo e preparando o ” campo” à nossa espera. Se o não fazem, juro, aqui, que nunca mais lhes falo. Eu prepararei o teu lugar, nem imaginas como. Até lá, vamos vivendo o nosso dia a dia e despedindo-nos, tal ” Amigos de Alex “, mas mais velhos. Beijinhos <3 <3

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. As notícias que não queremos ouvir e se multiplicam. A tristeza que nos invade. Esse tempo que é implacável. Abraço imenso

  11. Isabel Campos

    Não conseguimos estar em todo o lado e por isso vamos adiando encontros. Houve um tempo em que não era tão fácil fazermo-nos presentes como agora.

    Lembro as redes sociais que embora muita coisa menos boa tem isto de melhor, a proximidade.
    Na verdade não substitui abraços mas partilhas que também importam.

    Boa semana. Beijinho

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel, oela tua presença. Temos de ser mais exigentes connosco. Não podemos largar os afectos. Abŕaço-te muito.

  12. Regina Conde

    Dói perder Amigos. No entanto, quantas vezes estamos tempos sem nos sabermos. Tentamos colmatar a ausência física permanente, procurando recordações, vivências que nos fazem doer e chorar. A tua crónica é uma lição de vida e chamada de atenção. É verdade Jorge o tempo não perdoa, desconta dias à vida. Vamo-nos vivendo e falando sempre que possível. Não demores. Até já meu Amigo de sempre.

    .

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Temos pedaços de vida que nos escorrem entre as mãos e nos rasgam o corpo. De repente o pior. A dor intensa. Abraço grande

  13. Eulália Martins

    Uma crónica tocante. Como dizes, a vida passa muito depressa e não se sabe bem porquê muitas vezes adiamos os encontros e os afectos. Alguns desses foram no passado o que nos levou a crescer e a sermos mais e melhores.
    Não devemos adiar o amor. Também já passei por ‘arrependimentos’ quase fatais. Que estes momentos de não retorno nós façam pensar e dar o devido valor à nossa vida tão breve e efémera. Viver para aprender sempre
    Beijinho e obrigada pelas tuas palavras

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. A vida é um instante. Nós somos quase nada. Sentimo-nos quando nos abraçamos. Aí somos vida. A perda é horrível. Tanta dor. Abraço forte

  14. Isabel Soares

    Uma crónica sobre a dor da perda na primeira pessoa. E esta a morrer um pouco também. Ter de continuar parece leviano. A culpa emerge desconcertante. A saudade permanente instala-se, como a necessidade e inevitabilidade de integrar a nova realidade na nossa, agora mais pobre, singularidade.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Sim, a perda e o emergir do sentimento de culpa. O que talvez fosse possível fazer. O desgosto enorme. Abraço grande

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